Carla Flores, licenciada em Ciências da Comunicação, fez no verão passado dois meses de Voluntariado na Ilha do Sal. Um ilha em Cabo Verde, mais conhecida pelas suas paisagens turísticas, é uma das maiores atrações turísticas do país. No entanto, camuflada atrás do turismo, hotéis, praias e paisagens luxuosas esconde-se uma realidade muito diferente. A sociedade encontra-se dividida em dois extremos muito distintos. Se por um lado, uma parte da população vive do turismo e do comércio, outra parte vive em barracas num ambiente insalubre. 
A pobreza tem muitas faces, reflete-se na educação, na saúde precária, na falta de acesso à informação e ao conhecimento. Na falta de abastecimento de água, de saneamento, etc.



Como surgiu a ideia de fazer voluntariado?


Há muito tempo que queria fazer voluntariado em África. Não sei especificar quando surgiu esta vontade, mas há alguns anos já. No entanto, nunca me tinha predisposto a fazê-lo, pois estas missões implicam sempre alguns meses e, como estava na universidade, não conseguia conciliar ambas as coisas. Quando terminei o curso, comecei a pensar mais seriamente no assunto. Entretanto, no início do ano de 2010, inscrevi-me num grupo de acção social que faz voluntariado em África e em Portugal e, ao fim de seis meses de formação, fui uma das seleccionadas para ir em missão humanitária, neste caso para Cabo Verde.



O que significou esta aventura para ti?


Para mim é extremamente complicado explicar o que representou para mim esta missão, porque não consigo verbalizar a amplitude daquilo que vivi nesses dois meses. Posso dizer que foi a melhor experiência por que já passei e que no Sal fui sujeita às melhores e a algumas das piores coisas que vivi. Mas o balanço foi tão positivo que nunca me lembro das coisas menos boas. Acredito que tenha acontecido o mesmo com as outras pessoas que foram comigo. Foi sobretudo uma descoberta no que diz respeito à minha capacidade de ultrapassar medos e barreiras para poder estar à altura de todas as pessoas maravilhosas que nos receberam, de todos aqueles que fomos ajudar e da responsabilidade que tínhamos. Também nunca pensei que se pudessem criar laços tão fortes em tão pouco tempo. Mas, efectivamente, acredito que a intensidade do que vivi no Sal tornou tudo possível. Por mim tinha, ou continuado lá, ou trazido toda a gente comigo.


Antes de ires, sabias o que era fazer voluntariado?


Tinha tido algumas experiências de voluntariado. Já tinha sido monitora em colónias de férias. Além disso, durante a formação tivemos alguns momentos de voluntariado, mas esporádicos e que duraram no máximo três dias. Uma experiência tão intensa nunca tinha vivenciado. 


O que é preciso para ser voluntário? E para se ser um Bom voluntário?


Em primeiro lugar, é preciso ter vontade de fazer algo por alguém e querer 'mudar alguma coisa'. Não fazer as coisas porque 'fica bem' ou porque se é 'boa pessoa'. Tem de ser algo espontâneo. Conheço pessoas maravilhosas que não teriam a mínima capacidade para fazer uma missão de voluntariado e vice-versa. Há também determinadas características que são necessárias, como responsabilidade, humildade, altruismo e capacidade de adaptação. Mas, na minha opinião, o essencial é ter alguma vocação para se ser voluntário, porque a partir daí, tudo o resto vem por acréscimo. Dependendo da área em que se actua e do projecto em si, as características mudam, penso eu. Não creio que exista o perfil X ou Y, mas cada um, com as suas qualidades e defeitos, pode aplicar-se em fazer bem as coisas. Além disso, como geralmente se trabalha em equipa, as pessoas acabam sempre por se complementar. No caso do grupo que foi para o Sal, éramos todas completamente diferentes, mas conseguimos coordenar bem as nossas características e fazer o melhor que foi possível.



Hoje em dia a nossa sociedade, vive mergulhada num individualismo egoísta. Vocês, como voluntárias numa ilha onde não conheciam ninguém, numa ilha pobre, sentiram isso?


A última coisa que se sente no Sal é egoísmo! As pessoas de lá são maravilhosas e, na sua maioria, nada egoístas. Presenciei situações que aqui eram um pouco mais difíceis de acontecer. As crianças de rua, por exemplo, dividem tudo entre si, nomeadamente a comida, sem qualquer problema. Partem do princípio de que o que têm é para partilhar. Sempre que estávamos com elas insistiam também para nos dar o pouco que tinham. Penso que faz parte da cultura caboverdiana. Nenhum deles teve atitudes egoístas na nossa presença, pelo menos. Quando alguém pedia algo ou ajuda, nunca se ouvia um 'não' e nós sentimos isso para connosco também. 


Como foram esses dois meses?


Indescritíveis! Por mais que tente nunca vou conseguir transpor correctamente para palavras o que lá senti e o que ainda sinto em relação ao Sal. Foram dois meses muito intensos, sobretudo a nível emocional... Tudo o que vivíamos lá num dia correspondia a três ou quatro cá, dada a intensidade dos momentos. Depois da primeira semana, tínhamos a sensação de que já lá estávamos há um mês. Mas, ao mesmo, passou tudo a correr... Quando reparámos já estávamos na etapa final. Foram dois meses repletos de alegria em que estávamos completamente entregues à ilha do Sal. Quase não havia tempo para pensar em Portugal, embora em alguns alguns momentos fosse impossível controlar as saudades. 


Em que consistiu o vosso trabalho lá como voluntárias?


Éramos quatro voluntárias e dividimo-nos em dois grupos. O meu grupo trabalhou durante os dois meses com as crianças de Santa Maria em situação de rua, isto é, que viviam ou passavam a maior parte do tempo na rua. São jovens entre os 12 e 17 que saem de casa, muitos vindos das outras ilhas, e que não estão na escola. Como andam normalmente em grupo, acabam sempre por se ajudar uns aos outros. Nós passávamos os dias com eles  e procurávamos desenvolver algumas competências pessoais através de actividades, conversas, etc. Trabalhámos em parceria com o Nôs Kaza, uma entidade criada para apoiar os meninos de rua e reintegrá-los na escola. Além disso fizemos Escolas de Voluntariado Responsável, para que pudessem continuar o nosso trabalho depois de nos ausentarmos; participamos em algumas actividades com a Câmara Municipal do Sal e trabalhámos numa associação que apoiava crianças mais desfavorecidas. A Joana e a outra colega trabalharam na prisão de Espargos, também a desenvolver competências pessoais junto dos reclusos e, de certa forma, a prepará-los para a reintegração na sociedade. (Se falares com a Joana ela pode explicar-te melhor o trabalho dela). 


Qual a melhor experiência? E a pior recordação que trouxeste de lá?


Felizmente não consigo eleger apenas um momento como o melhor. Foi tudo tão maravilhoso que os dois meses valem como um todo. De qualquer forma posso dizer que a sensação mais gratificante que tive foi sentir que nós já fazíamos parte do Sal. A partir de certa altura, os meninos de rua, por exemplo, já sabiam a que horas chegávamos e esperavam sempre que viéssemos. Se, por algum motivo, não pudéssemos ir ter com eles ou ficássemos sem vê-los durante alguns dias, estranhavam e perguntavam porquê que não tínhamos ido. Chegar ao fim do dia e perceber que os tínhamos conquistado um pouquinho mais, que eles confiavam em nós ao contar-nos as suas histórias mais pessoais e que criavam uma abertura para que os pudéssemos ajudar era realmente a maior recompensa que podíamos receber. Não foi um caminho fácil e até conquistarmos a confiança de alguns deles tivemos de 'batalhar' muito. Mas, salvo duas ou três excepções, conseguimos. 
Quanto às piores recordações, talvez tenha sido a despedida, a incerteza de voltar a vê-los e o medo de perder por completo o contacto, no meu caso, com os meninos de rua. Ao início também não gostava muito de dividir o mesmo tecto com baratas e outros bichinhos que passeavam na nossa casa, mas como é óbvio, isso acabou por se tornar normal e depois até brincávamos com a situação.


Há alguma história que gostasses de partilhar?


Há várias, mas são pequenas coisas que, descontextualizadas, podem não ter grande interesse. Mas posso deixar alguns exemplos. Por várias vezes alguns turistas pensaram que fazíamos parte do grupo de meninos de rua e ofereciam-nos comida, pelo que tínhamos de explicar que estávamos com eles no âmbito de uma missão humanitária e que não poderíamos aceitar. Outras vezes pensavam que éramos freiras, por estarmos em missão, e benziam-se ao passar por nós.
Mas houve situações bem mais sérias que demonstram o distanciamento que existe entre a realidade daquilo que vivi no Sal e do que vivo em Portugal. Uma vez um dos meninos de Santa Maria magoou-se no braço e não tinha dinheiro para ir ao hospital, nem quem o levasse lá. Senti-me completamente de mãos atadas porque não tinha mesmo como ajudá-lo. Era uma situação completamente nova para mim porque ir ao hospital naquele momento foi a primeira hipótese que coloquei, tal como faria em Portugal. No entanto, ele só conseguiu ir passados três dias.
Num dos convívios que fizemos e que coincidia com o aniversário de um dos meninos de rua, o aniversariante perguntou-me porque lhe estávamos a fazer uma festa. Dizia ele que não tínhamos obrigação e que nunca ninguém tinha festejado o aniversário dele. Confesso que nesse momento não soube o que lhe dizer porque nunca pensei que ele fosse valorizar tanto aquele momento. Ele estava radiante. 


Em euros, vocês não ganharam nada, e pessoalmente?

Realizei um sonho e ganhei a melhor experiência que vivi até hoje. Esta missão superou todas as minhas expectativas e vou recordá-la sempre com imensas saudades. Fiquei completamente apaixonada pelo Sal e pelos salenses. As crianças com quem trabalhei conquistaram-me por completo e o que “recebi” delas foi muito superior a tudo aquilo que pude “dar”. Mas sinto isso também em relação a todos os amigos que fizemos, que desde o início nos receberam, acolheram-nos, fazendo-nos sentir em casa, e em vários momentos mostraram que nunca estávamos“sós”. Fui completamente cativada pelas pessoas, pelas suas histórias, pela cultura, pela alegria com que levam a vida, por tudo mesmo! Sinto-me uma privilegiada por ter ido para o Sal na condição em que fui.


Se tiveres oportunidade, voltas a fazê-lo?


Quando se faz voluntariado uma vez, fica-se com imensa vontade de repetir. Antes de ir pensei que ia sentir-me realizada apenas com estes dois meses. Contudo, quero muito voltar ao Sal, não só pelos laços que lá criei como por aquilo que sei que ficou por fazer. Dois meses nunca é suficiente para mudar algo. São processos que exigem muito mais tempo e que muito dificilmente alguém vai conseguir alterar. Mas, respondendo à tua pergunta, voltava a fazê-lo sim! Tudo dependeria das condições em que para lá fosse. Enquanto lá estive, houve pouquíssimo contacto com a minha família e amigos de Portugal e esse aspecto foi, sem dúvida, o que mais me custou, embora tivesse superado bem a situação. Sei que em alguns lugares os voluntários têm muita dificuldade em contactar o país de origem, mas esse não é o caso do Sal. Depois de regressar percebi que essa falta de contacto não tinha sido necessária para que o meu trabalho lá fosse bem desempenhado, muito pelo contrário! É nesse sentido que digo que voltaria a repetir a experiência sim, mas tudo dependeria das condições em que fosse.

De todas as fotografias que tiraste, escolhe uma, e descreve-a.


Esta foto foi tirada na Associação Chã de Matias, onde almoçavamos durante a semana e apoiávamos os monitores em algumas actividades desenvolvidas com as crianças. A associação  apoia crianças de famílias desfavorecidas, funcionando como uma espécie de ATL. A única contrapartida para que as crianças estejam lá é andarem na escola.







Por: Cidália Monteiro 

3 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito da entrevista.
Muitos parabéns, Carla, pela pessoa encantadora que és!

FG (UTAD)

Ana João disse...

Após alguns meses de missão, descubro esta entrevista :) Fantástico :)
Pelo tempo e experiências que ainda não conseguimos partilhar...Soube bem ler :) Talvez seja um sinal :)

Beijo*

Kelle disse...

Através de que organização foi para Cabo Verde fazer voluntariado? Gostava muito de ter uma experiência destas e ajudar quem precisa!

Enviar um comentário