A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) tem impulsionado a investigação científica nas mais diversas áreas. Para continuar a demarcar-se, a nível nacional, como uma das academias com uma elevada taxa de preferência no acesso ao Ensino Superior, a universidade decidiu dar mais um passo na excelência e no pioneirismo.
A 23 de Janeiro de 2006, o Senado da UTAD aprovou a criação da licenciatura em Engenharia da Reabilitação e Acessibilidade Humanas, sendo já opção para os estudantes no ano lectivo 2007/2008. Neste âmbito, fomos conhecer um dos impulsionadores desta área, não só na academia transmontana, como no País. Francisco Godinho é, actualmente, responsável pelo Centro de Engenharia da Reabilitação e Acessibilidade (CERTIC), na UTAD. Falou da sua experiência nesta área, do trabalho de investigação desenvolvido por este centro, bem como da dificuldade que o curso tem em adquirir visibilidade, por estar localizado numa instituição do Interior.
Ana Teixeira (AT): A UTAD foi pioneira na criação da Licenciatura em Engenharia da Reabilitação e Acessibilidades Humanas. Como decorreu todo este processo?
Francisco Godinho (FG): Acaba por ser um passo preparado desde há alguns anos. A UTAD começou a desenvolver projectos na área da tecnologia aliada às necessidades especiais em 2000, com o projecto Trás-os-Montes Digital, onde começaram a ser desenvolvidos alguns programas, nomeadamente um projecto que ficou conhecido por “Ciber-enfermarias”. A ideia era proporcionar a doentes acamados nos hospitais meios de comunicação, não só presenciais, como à distância, isto é, oferecer outro tipo de soluções, para que pudessem usar a Internet para falar com familiares ou procurarem informação, mesmo até para procurar soluções para os problemas que tinham, ou até à necessidade de mudança de orientação profissional.
Este projecto começou a ser implementado nos hospitais do distrito de Vila Real e apercebemo-nos, na altura, que os casos mais graves não estavam nestes hospitais e que a tecnologia mais sofisticada que se antecipava acabou por não ser necessária. No entanto, apercebemo-nos ainda que o simples facto de poder usar um computador e a Internet, que é algo bastante pertinente para este tipo de situação, pois minimizava o isolamento, tinha efeitos terapêuticos. No fundo, melhorava o bem-estar do próprio doente, daí que tenha sido uma iniciativa estendida ao País inteiro.
O desenvolvimento de várias actividades nesta área, como o CERTIC, serviu de preparação para o lançamento deste curso. Era uma ideia que já existia há bastante tempo, era uma lacuna a nível nacional e até no contexto internacional, pois são raras as formações nesta área. A minha própria experiência profissional, (já trabalhei como engenheiro da reabilitação), sabia que havia uma carência enorme de profissionais nesta área. À medida que íamos adquirindo experiência, íamos preparando o lançamento desta formação. Sempre perspectivamos criar uma licenciatura e um mestrado e considerávamos que o primeiro passo deveria ser a licenciatura. Foi na sequência deste trabalho que foi lançado o curso.
AT: Na UTAD foi criado o CERTIC, em 2001. Que tipo de investigação tem sido implementado e quais as suas principais funções?
FG: A partir de 2001, criamos o CERTIC, um centro vocacionado para as acessibilidades das tecnologias de informação e comunicação e, além da continuidade que demos a esse projecto, havia outra área que desde o início dávamos bastante importância: a própria acessibilidade à Internet. Este centro já tinha alguns materiais, estabelecemos um protocolo com o Ministério da Educação (ME), no sentido de apoiar as escolas do distrito, no que diz respeito a recursos informáticos para crianças com necessidades educativas especiais. Todas as avaliações dessas tecnologias eram feitas neste centro e depois eram prescritas essas mesmas soluções que eram financiadas pelo ME. Foi um projecto que teve continuidade até 2008, altura em que o ME decidiu replicar essa experiência a todo o País. Ao longo deste tempo surgiram outros projectos, como os planos nacionais para cidadãos com necessidades especiais na sociedade de informação, em que o nosso trabalho serviu como exemplo para implementar iniciativas neste domínio.
Assim, com a criação deste centro tínhamos como objectivo, por um lado, a prestação de serviços à comunidade, em concreto projectos de apoio aos hospitais, de apoio às escolas, a várias pessoas, independentemente do seu contexto que nos pedissem para encontrar soluções para o seu dia-a-dia, em qualquer parte do País. Por outro lado, sempre nos preocupámos em desenvolver estudos, alguns estiveram relacionados com propostas de alteração de legislação e de políticas, também alguns estudos ao nível de Mestrado. O próprio processo de criação do curso de Engenharia da Reabilitação foi necessário um grande estudo a esse nível. Alguns projectos de investigação na área da mobilidade para pessoas cegas estão a ser desenvolvidos, temos organizado também, todos os anos, eventos, workshops e conferências internacionais. No mês passado (Novembro), realizámos uma conferência internacional na área da acessibilidade em Oxford, no Reino Unido. Ultimamente, todos os recursos estão disponíveis aos alunos, não só desta licenciatura, como de outras áreas. Damos formação na área das tecnologias de apoio e da acessibilidade.
“As iniciativas que temos feito demoram
algum tempo a tomar forma”
AT: O CERTIC tem vindo a testar algumas inovações que têm sido criadas, como por exemplo, o interface auto-táctil. Em que consiste?
FG: No caso do projecto do interface auto-táctil, a ideia era mostrar que havia soluções para tornar e facilitar o voto independente, em concreto pessoas com deficiência visual, nos vários actos eleitorais. Não se justificava termos uma legislação que, para esses casos, a única solução era o voto com a ajuda de terceiras, mas ainda é uma legislação que ainda não permite introduzir essas inovações. Está tudo bem definido na forma como se vota, não estando prevista a utilização de qualquer meio auxiliar, sem ser o Homem. As inovações que poderemos ter não podem ser aplicadas.
Nesse caso concreto, fizemos um pedido de alteração de legislação ao Governo, porque já tinha havido uma petição à Assembleia da República (AM), mas esta remeteu para o Governo. Nós fizemos essa experiência nas eleições autárquicas e legislativas e mostramos essas soluções, não só à Comissão Nacional de Eleições, como ao Governo. Voltámos a pedir a mudança de legislação, mas o Governo volta a dizer que isso é da competência da AM.
Em Junho passado, o Centro Democrático Social apresentou uma proposta de alteração de todas as leis eleitorais, no sentido de proporcionar maior independência a este tipo de eleitores, mas isso ainda não foi discutido. No entanto, o próprio texto ignorava, uma vez mais, o que tínhamos feito. Voltavam a falar em boletins de voto em Braille que não é razoável. Contactámos esse grupo parlamentar que pediu de imediato as informações sobre o que tínhamos feito e disseram que iam alterar o texto, mas até ao momento ainda não conhecemos mais nenhum desenvolvimento.
São algumas iniciativas que, por vezes, demoram o seu tempo, mas que nos dão visibilidade e chamamos a atenção. Por exemplo, no caso da Televisão, tivemos várias tentativas de lançamento da Televisão Digital Terrestre, foram feitas propostas, na altura, para a Alta Autoridade para a Comunicação Social para facilitar o acesso da informação a pessoas cegas com áudio-descrição. Se na altura era considerado um pouco prematuro, ainda que tivesse obtido pareceres favoráveis, actualmente isso já está incorporado na própria legislação da lei da televisão, embora ainda não esteja a ser cumprido nos privados. São exemplos de iniciativas que temos tido e que, por vezes, demoram alguns anos a tomar forma.
AT: Como correram os testes destes projectos nas eleições?
FG: Nas eleições experimentámos três soluções: um sistema que fazia uso de um computador, com um teclado de conceitos onde se podia criar um layout, e que, neste caso, estava apenas colocado em cima um boletim de voto normal, que tinha por cima uma grelha onde se podia aperceber que localização estavam os partidos. E ao carregar nessa zona do partido, o próprio computador verbalizava o nome do partido. Permitia, não só ter uma informação táctil, como sonora, o que dá maior segurança a quem não consegue fazer uso da visão.
Também apresentámos outra solução ainda mais fácil, sem recurso a computador. Tinha também uma grelha, com uns círculos próximos do local de voto e depois uma zona de voto recortada, o que nos parece ser mais viável. Não dava a mesma segurança do modelo áudio-táctil, mas em termos económicos e de implementação seria ainda mais razoável.
Testámos também uma solução para pessoas com deficiência motora que não pudessem usar os membros superiores. Fizemos uso de um computador, de periféricos para interagir e de uma impressora para imprimir o boletim de voto. Esta é uma solução que, a curto prazo, me parece mais difícil de implementar, porque por melhor que seja a impressora, a própria marca da cruz distingue-se de uma marca manual. Este tipo de sistema não foi nada que tivesse sido apenas imaginado por nós. Temos um exemplo num país nórdico, onde eles já usam sistemas de votação electrónica, sendo, por isso, mais viável e não têm os problemas que nós poderíamos ter por usarmos o papel.
“Nesta área, a sensibilização
é um eixo permanente”
AT: Os primeiros alunos desta área mostraram-se dinâmicos e empenhados em desenvolver esta valência. São exemplos as iniciativas “Jogos sem Barreiras”, o “Jantar sem Mãos” ou o “Jantar às Escuras”. A sociedade ainda está pouco sensibilizada para a deficiência?
FG: Sim, embora aqui se valorize mais a própria capacidade dos alunos, de pró-actividade, de organização, de iniciativas que contribuem também para a própria formação. Desenvolvem competências de comunicação, a própria organização e trabalho em equipa, pelo que essas iniciativas são sempre fundamentais. Nesta área, a sensibilização é um eixo permanente e é por isso que temos o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, pois estamos num sector onde existe um grupo de pessoas mais esquecidas, porque não têm hipótese de prosseguir com os estudos, ou adquirir/continuar com o seu emprego. Penso que mesmo para os próprios alunos, no futuro, como engenheiros, não podem deixar de parte o continuar a participar e até em organizar iniciativas equivalentes que iniciam enquanto estudam.
AT: Em Julho de 2010, Portugal formou os primeiros licenciados europeus em Engenharia de Reabilitação e Acessibilidade Humanas. Quais as perspectivas em termos de mercado de trabalho?
FG: Saíram nove licenciados. Neste primeiro ano, percebemos que a maioria dos alunos demora cerca de quatro anos a licenciar-se. A partir do próximo ano, pensamos ter um número de alunos quase equivalente ao número de entradas. Constatamos que a maior parte dos estudantes manifesta prosseguir com os seus estudos, neste caso, o Mestrado e foi um pouco isso que aconteceu.
Se não me engano, há duas alunas que estão a procurar emprego, têm algumas ofertas em vista na perspectiva de se concretizarem a curto prazo. As saídas profissionais são bastante abrangentes: todas as instituições, seja do Estado, seja ao nível das organizações privadas, entidades que dão apoio a pessoas com deficiência, a pessoas idosas, as autarquias ao nível da acção social, hospitais, unidades de cuidados continuados, casas de misericórdias, lares, empresas na área das ajudas ao nível da tecnologia, empresas de consultoria na área da acessibilidade urbana. Há também a possibilidade de trabalhar como independente.
Por um lado, estes alunos têm a vantagem de serem os únicos com este tipo de qualificação profissional, por outro, têm a desvantagem destas instituições ainda não conseguirem compreender o que eles podem fazer e como não têm essa experiência nos seus quadros, é um processo que ainda pode levar algum tempo a corresponder as necessidades à oferta. Por exemplo, nos nossos hospitais não se conhece nenhum profissional desta área a trabalhar. Em Londres, num dos hospitais, existe uma divisão específica com 60 profissionais. Penso que daqui a dez anos poderemos estar como o hospital londrino. Há aqui um processo de aproximação no qual os próprios finalistas têm uma responsabilidade de existir e persistir na procura destas oportunidades de trabalho. O sucesso estará muito relacionado com a sua vocação e persistência em exercer esta profissão.
“Ter um curso do género no Interior é uma
desvantagem em termos de visibilidade”
AT: Ainda há um longo caminho a percorrer.
FG: O simples facto de dizermos que não há profissionais nesta área e que são necessários não significa que as portas estejam logo todas abertas. Mas a grande diferença é que, para além de estarem preparados, muitos deles têm uma vocação e, por isso, irão persistir, nesse caminho. E isso é decisivo na concretização das oportunidades. Um exemplo: imagine-se que alguém do curso de Electrotecnia de Informática se confronta com um projecto final de Mestrado e até se entusiasma. Quando acaba o curso até é capaz de tentar trabalhar nesta área uma ou duas vezes, mas não tenta mais que essas duas vezes, porque vê outras oportunidades ou tem outros interesses e perde-se. Era algo que eu próprio sentia antes de criarmos este curso.
AT: A UTAD foi distinguida com o Galardão da Inclusão. O que significa?
FG: É um reconhecimento público da coragem e ambição que a universidade teve na formação nesta área. Penso que é um incentivo para a academia, para os próprios alunos, pois contribui para favorecer as saídas profissionais destes alunos. Quanto mais conhecido for o curso, mais vantagens haverá em termos de opções de trabalho. Não podemos esquecer que o facto de haver só um curso do género e no interior do País é uma desvantagem em termos de visibilidade. Estamos a fazer um esforço, sozinhos. Se este curso existisse em duas ou três universidades, no Norte, Centro e Sul, eram contributos para uma visibilidade superior àquela que conseguimos, estando sozinhos.
“Acreditamos que o futuro é para melhor”
AT: Qual o papel da Sociedade Portuguesa de Engenharia de Reabilitação e Acessibilidade?
FG: Esta associação, que se encontra localizada na academia transmontana (http://www.supera.org.pt/), segue estratégias de outras associações congéneres a nível internacional. A primeira foi criada nos Estados Unidos da América, existindo também semelhantes no Japão e na Austrália. A nível europeu existe também uma associação para o desenvolvimento das tecnologias de apoio. Em Portugal, a ideia era a de uma associação científica, técnica e multi-disciplinar. Não é só para engenheiros, porque estes profissionais devem trabalhar em equipa com outros profissionais que tenham interesse em aliar as tecnologias à melhoria da qualidade de vida das pessoas com deficiência.
O papel dessa associação é o de aproximar profissionais desta área, desenvolver o conhecimento científico, dar-lhe visibilidade. Acaba por ser um fórum científico na área da engenharia da reabilitação, da acessibilidade e das tecnologias de apoio.
AT: Qual o futuro da Engenharia de Reabilitação?
FG: O futuro é a evolução. Por um lado, porque as sociedades vão envelhecendo. Portugal está entre os países mais envelhecidos a nível mundial, prevendo-se, dentro de duas décadas, a existência de cerca de 24,5 por cento de população idosa. As pessoas cada vez vivem mais tempo, e não é só o peso de pessoas com mais de 65 anos, mas a sua longevidade. Por isso, as consequências ao nível da incapacidade e deficiências vão-se agravando e, por exemplo, vamos ter cidadãos com mais de 80 anos. Isso obriga a uma melhoria das respostas, tanto ao nível da acção social, como da Saúde, onde a Engenharia da Reabilitação tem um papel fundamental. Por outro lado, sendo uma área aliada às tecnologias, tem que acompanhar toda a evolução tecnológica. Estamos numa sociedade também tecnológica e, portanto, irão surgir novas oportunidades para o desenvolvimento de produtos e a necessidade de anteciparmos que essas novas tecnologias não vão excluir esta população devido às suas limitações. Temos também a própria evolução da legislação, ao nível da acessibilidade e de direitos das pessoas com deficiência. Há cerca de três anos, foi aprovada a convenção da Organização das Nações Unidas sobre as pessoas com deficiência, o que torna a questão da acessibilidade como um direito humano e toda a legislação tem que, agora, ser formatada e adaptada a essa convenção subscrita por vários países. Acreditamos que a própria evolução de Engenharia da Reabilitação terá também como motor o desenvolvimento da formação e o desenvolvimento da profissão que actualmente ainda é pouco conhecida ou quase inexistente no nosso País. À medida que for evoluindo a formação e o exercício da profissão, a Engenharia da Reabilitação, no seu todo, vai desenvolver-se. Acreditamos que o futuro é para melhor.
Ana Teixeira
Fotos Ana Teixeira
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